viernes, 1 de abril de 2011

A letra fulgurante e vermelha de Tununa Mercado


Narrativa contundente de escritora argentina tece uma memória do exílio
por Paloma Vidal

A primeira cena de Em estado de memória, da escritora argentina Tununa Mercado, exilada no México durante os anos de ditadura, é o encontro com um homem chamado Cindal, que na sala de espera de um consultório psiquiátrico busca ajuda desesperado: “Diga-lhe que faça alguma coisa por mim, que faça alguma coisa por mim! Tenho uma úlcera, uma úlcera!”. O apelo paralisa a secretária, o médico e os outros pacientes, entre os quais se encontra a escritora, que não sabem o que fazer diante dessa dor que irrompe fora da ordem estabelecida. A dor de Cindal vem “escurecer a vida dos outros e minar a plenitude a que todos têm direito”. Ela “traça uma letra fulgurante e vermelha”, detalha a narradora, condensando nessa imagem uma intensidade que bem poderia aludir à escrita da própria Mercado, ao se apropriar de experiências compartilhadas por muitos em situação de desterro para criar uma das narrativas mais contundentes da literatura latino-americana recente.
É uma singular apropriação, que se dá numa fronteira entre identificação e desprendimento. Ao longo das dezesseis partes em que se divide o relato, Mercado faz um exercício de se aproximar de certas sensações, pensamentos, lembranças que, embora provoquem nela uma estranheza radical, compõem um quadro próprio de vivências. Assim, na parte intitulada “A espécie furtiva” ela recupera um “vestígio” de história infantil desdobrado sutilmente em várias percepções que retornam em situações diferentes, ora na forma de “uma voz interior, levemente separada da minha própria, formando uma espécie de som-aura a seu redor”, voz que diz à narradora “uma verdade” a respeito de padecimentos não muito definidos, que ainda assim revelam sua fragilidade; ora na forma de uma imagem, como a de alguém que ela perdeu, cuja história “havia se tecido separada de mim e de minha circunstância; de maneira sigilosa, havia invadido meu interior, minha mente, minha alma e, de repente, sem anúncios prévios, começava a me fazer sofrer e me situava na carência”.
Desdobramentos similares a esses aparecem em vários outros momentos. Em “Visita guiada”, Mercado começa falando de alguém chamado Pedro, “refugiado espanhol, mas de difusa nacionalidade” que “grudou” nos exilados argentinos. Em seguida narra uma cena traumática que o tornara “um ser suscetível e obsessivo”: ele e sua mãe, uma judia alemã, haviam sido forçados a fugir de Paris na primavera de 1940, face à iminência da invasão nazista. Já na estrada, a mãe deixa o filho no caminhão que os transportava em direção ao sul para ir buscar água e mantimentos numa cidade vizinha. Diante de uma ameaça de bombardeio, o caminhão parte, separando-os. “Talvez se unisse a nós”, sugere Mercado, “porque a reprodução do vazio era o estado próprio do exílio: carência e compensação da carência, nudez e agasalhamento, mutilação e prótese”. O exílio de Pedro se sobrepõe ao dela e ao de outros argentinos, cuja condição por sua vez os levará a visitar freqüentemente a casa de Leon Trotsky, “o modelo máximo da maior tragédia e do desterro mais dramaticamente interrompido”. Mercado conta então como eram essas visitas e encerra o fragmento falando de uma “casa ‘paterna’ muito longínqua e imaginária que, saltando as décadas, transmigrava para me abrigar”.
A escrita vai desse modo tecendo uma memória que não é conciliadora ou compensatória, mas, citando a própria Mercado em Narrar después, livro de ensaios de 2003, “que se sofre por intempestiva, que nos desvela quando se eclipsa, que se exerce como um mandado ou se evita por auto-compaixão”. Esse tipo de trabalho mnêmico, que recupera certas “zonas escurecidas” ao invés da reproduzir o que já se cristalizou, exige uma escrita capaz de afrontar materiais que pareciam destinados ao silêncio, um ato de tessitura que se faz por superposição de camadas de sentido, desdobradas umas de outras, para dar conta desse estado singular, um “estado de desvalia” em que o sujeito se expõe em sua máxima vulnerabilidade.
Na parte “Alvéolos”, Mercado descreve com minúcia um efeito de angústia provocado por superfícies perfuradas, buracos idênticos, um do lado do outro ou em profundidade, como as corolas das flores ou os feixes de fungos, casos em que não é possível distinguir claramente os limites dos corpos, onde o vazio e onde o cheio. Às vezes mais do lado da sensação; outras como um pensamento que se desenvolve no limite do impensável; outras, ainda, como algo que está entre a sensação e o pensamento, “incontrolável e imponderável”, que não pode ser propriamente pensado, mas tampouco é apenas sensação. Não há melhor exemplo do método usado por Mercado para construir seu relato do que esse “efeito alvéolo”, quando ela se entrega às descrições que avançam mais e mais e mais, provocando no próprio leitor o desassossego de algo que não tem fim, ameaçador, que prolifera sem que se saiba aonde vai dar, chegando a abarcar “a realidade inteira”.
Finalmente, da descrição proliferadora que beira à abstração surge uma imagem real do abjeto: “Um dia, depois do regresso à Argentina, decidi rastrear, a qualquer custo, as zonas proibidas da memória”, antecipa Mercado. Talvez aqui esteja sintetizado o projeto deste livro tão admirável e comovedor. Rastrear, a qualquer custo; pôr-se, corajosamente, nesse estado de disponibilidade, para descobrir, no percurso da escrita, que a sensação perturbadora provocada pela visão dos alvéolos pode levar a uma imagem apagada do terror: “Corpos amontoados e mortos; corpos alinhados dentro de fossas, chamadas, com pertinência, de fossários; entranhas de uma câmara de gás expostas num corte transversal (a porta foi aberta); colunas de um desfile militar nazista, os capacetes redondos vistos de cima, enfileirados, em sua caixa retangular e quadriculada”.
Mas se trata, também, de que a escrita possa aplacar o terror, contê-lo, para criar um espaço de acolhimento, uma nova casa a partir dos restos e vazios deixados pelas experiências traumáticas do passado. Então o livro refaz, assim como o do exílio, o caminho do retorno, e com ele traça a possibilidade de que essas experiências possam por fim se inscrever na superfície do papel.

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