viernes, 4 de junio de 2010

À Déa Martins

Déa querida:

Tô no sul da Noruega, depois de rodar bolsinha por Portugal,
Espanha e Suécia. Voltei a Stockholm depois de 21 anos, foi
emocionante. Te escrevo na sala de uma casa no meio de um jardim.
De frente para um fjord. Ouvindo Callas e fumando horrores
enquanto Augusto cuida de Evelyn, a gata castrada hoje, um escravinho
norueguês loiríssimo corta a grama lá fora. Toda Laika tem seu dia
de Sthéphanie de Mônaco, baby. A vida me parece bela e mágica,
mas morro de saudade de você: escolhi esse cartão a dedo. Chego
em São Paulo (medo!) dia 8. Quero te encontrar bela e tirana. Beijo

Caio Fernando Abreu

PS - Jaciiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiira!

Na Suécia tem uma cidade chamada Sa lem!

O FILHO DA MÃE: degradação, amor e guerra


por Carlos Henrique Vieira

O filho da mãe é o mais recente livro de Bernardo Carvalho, que entre outras obras publicou O sol se põe em São Paulo (2007), Mongólia (2003) e Nove Noites (2002). Publicado em 2009 pela Companhia das Letras, o romance faz parte do projeto “Amores Expressos”, no qual dezessete escritores foram enviados para passar um mês em diferentes cidades do mundo com a missão de escreverem uma história de amor, além de manterem um blog durante o período em que permanecessem na cidade.
Carvalho passou um mês em São Petersburgo na Rússia, porém uma tentativa de assalto ainda no terceiro dia da estadia do autor, na principal avenida da cidade, a avenida Niévski, imortalizada na literatura russa em obras de autores como Gogol e Dostoievski, foi determinante para o romance que Carvalho escreveria.
Em seu blog Carvalho escreve: “E por incrível que pareça é entre esta sucessão deprimente de enormes blocos de apartamentos, alguns em estado avançado de decrepitude, margeando uma imensa avenida, um mundo na maior desolação, que pela primeira vez reconheço a vida que eu procurava para o meu romance, a do outsider, que de alguma maneira tem a ver com a minha própria experiência na cidade e é a única que eu consigo entender.” Essa sensação de estranhamento com o lugar, de não pertencimento, que caracteriza o outsider - aquele que não faz ou não se sente parte de um determinado grupo ou organização - caracteriza os personagens centrais do romance: Ruslan e Andrei. Ruslan é tchetcheno e vai para São Petersburgo para trabalhar na reconstrução da cidade devido às comemorações do seu tricentenário e fugindo da guerra; Andrei é de Vladivostok e está em São Petersburgo para servir ao exército, mas torna-se um desertor depois de ser roubado quando retornava ao quartel, após ser obrigado a prestar serviços sexuais com o propósito de conseguir dinheiro para seus superiores.
O romance traz como foco central a história de três mães, Marina, Anna e Olga, e a relação destas com seus filhos e com a guerra, afinal: “as mães têm mais a ver com as guerras do que imaginam”(p. 186). Marina é uma das integrantes do “Comitê das mães dos soldados de São Petersburgo” e tenta salvar a vida de outros jovens, uma vez que já não pode mais salvar a de Pável, seu filho. Anna e Olga aparecem como figuras desmitificadas sem a aura de mães perfeitas. Anna é a mãe de Ruslan, mas o abandona ainda recém-nascido na Tchetchênia, aos cuidados do pai e da avó paterna, e quando o filho já adulto a procura, renega-o. Olga é a mãe de Andrei, mas não consegue ir contra o marido e permite que o filho seja enviado ao exército, quando havia ainda algumas chances de evitar essa partida.
A guerra servirá ainda para aumentar a tensão e tornar a atmosfera do romance mais densa e pesada, além de contribuir como um fator que provocará um permanente estado de pavor e angústia na já desolada vida dos protagonistas. O romance é ambientado durante o período da segunda Guerra da Tchetchênia (2003). Os fatos principais ocorrem no decorrer de aproximadamente um ano, entre abril de 2002 e 2003. No entanto, a narrativa em terceira pessoa desloca-se tanto no tempo quanto no espaço, seja retrocedendo ao passado para contar-nos o que ocorreu na vida das personagens e retornando ao presente, ou, ainda, deslocando-se de São Petersburgo a Vladivostok, ou transferindo-se para o Cáucaso, a floresta Amazônica ou ao mar do Japão.
São Petersburgo aparece como uma cidade de belas fachadas, mas que esconde a destruição e a decrepitude causadas pela guerra, bem como a degradação das famílias, a decadência do exército, a aversão àqueles que não se enquadram em padrões convencionais, que aparecem nas representações da xenofobia e da homofobia, assim como das vidas destruídas tanto pela guerra quanto por ações do passado que ainda interferem na vida das personagens.
Carvalho, ao retratar no romance vidas do outsider, o faz não apenas através da marginalidade que cerca os protagonistas, mas também através de vários outros sentimentos que os afligem, como a solidão, a vulnerabilidade, o desamparo, a angústia de estar fora do lugar, de não pertencer a tudo aquilo que está à sua volta. Há a busca pelo acolhimento por uma outra pessoa, um kunak, que segundo as tradições inguches é alguém que possibilitará a um homem: “seguir o próprio caminho em paz, sabendo que existe no mundo alguém, como ele, com quem ele pode contar na vida e na morte.” (p. 161).



Referência bibliográfica: CARVALHO, Bernardo. O filho da mãe. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.